2009-05-03

O velhote (II)

Após revirar o quarto à procura da pantufa certa, ele lá a encontra, e agora todo equipado com robe e pantufas da mesma tonalidade, não perde mais um segundo, imediatamente inicia a volta para junto dela numa “Marcha atlética” (um correr sem correr). Sorri para si mesmo pois está a conseguir manter um bom ritmo, em trinta segundos já chegou a metade do percurso, mais trinta e chegará à sua meta, ao seu destino, ao seu lar, chegaria a ela. “Ela”, essa palavra sempre foi o suficiente para ele em todos os momentos decisivos, “Ela”, essa palavra sempre esteve com ele de uma forma ou de outra no caminhar diário pela vida, assim como estava prestes a estar naquele preciso momento, pois um instante de distracção com “Ela” e foi o suficiente para tropeçar numa das pantufas, o que o fez cambalear ao longo de três passos directo para os braços da nova enfermeira. Sorte de ambos, ela tinha tanto de simpatia como de robustez. Ela tinha chegado há uma semana, ainda não o conhecia, ainda não conhecia a paixão dele por “Ela”, a única coisa que a enfermeira tinha reparado é que ele andava sempre a correr, e após este choque com ela, e depois de o ajudar a recompor a simpática enfermeira diz-lhe calmamente: - Tenho reparado que você anda sempre a correr, se calhar seria melhor não beber tantos líquidos, assim não teria de correr tantas vezes para o WC! Ele tenta conciliar o pensamento de amaldiçoar uma vez mais o raio da pantufa, com os 43 segundos que acabou de perder, com um: - Claro, claro, que devolve à simpática enfermeira, não tem tempo para lhe explicar que não é para o WC que corre, mas sim para algo mais importante, o seu mundo!

Para não correr mais riscos, para não perder mais um segundo desnecessariamente, procura inspirar-se no caminhar dela, calmo, altivo, atento, constante, que sempre a levou até onde ela sempre quis. Resultou e eis que finalmente chega à sala comum. Por uns instantes o seu coração sofre novamente uma alteração cardíaca, desta vez não por a ver, mas sim por a não ver. Tirando um grupo de idosos que parece muito animado num canto da sala, ela não está! Ele já passou por isto muitas vezes, de correr para ela e quando lá chega ela não está, ele aprendeu a encontra-la, ele sabe que tem de fechar os olhos, sabe que para a encontrar tem de sentir onde ela se encontra.

Por vezes a vida parece revela-se inexplicavelmente simples, por vezes deixa-se ver sem qualquer tipo de mistério, a todos aqueles que sabem o que procuram e como o devem procurar.

Mal ele fechou os olhos, soube onde ela estava, soube que ela continua onde sempre esteve, perto dele. Era tão óbvio, ela estava ali mesmo, naquela mesma sala… ela era o centro de atenção daquele entusiástico grupo de idosos, devia ter percebido logo, um grupo animado daqueles é coisa rara naquele sítio. Ele continuava a não conseguir vê-la pois existiam pessoas entre eles, mas sabia que era ali que estava, bastava ouvir o sonoro cantar da voz de vida que emanava daquele entusiástico grupo de idosos, ele sabia muito bem o que os estava a fazer cantar daquela forma.

E dessa forma invulgar, a olhar para traseiros de robes de todas as cores… ele apaixona-se uma vez mais por Ela.

1 comentário:

Filipa disse...

Esta velhota é a mulher mais sortuda do mundo!...
...Porque quem é amado assim, não precisa de mais nada!...